quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Jimmy Quest - Capítulo 02

-> Capítulo 01

O cachorro era um jack russel, igual àquele do filme. Disseram que seria o cachorro ideal para ele, não apenas pelas condições que vivia, mas também pela sua personalidade. Ele nunca acreditou muito nesse disse-me-disse de um que tem cara disso e outro que tem cara daquilo, mas resolveu apostar - independente da situação, ele sempre optava por dar um voto de confiança e talvez esse fosse um dos motivos de ter se isolado em sua fortaleza, apenas descendo às ruas e ao povo quando lhe aprazia. Ao menos era assim que era visto por alguns que o cercava. Quando deu conta de si, o atendente da petshop estava acenando, trazendo-o de volta à realidade. Gostou do bicho desde o primeiro instante, levou-o pra casa com toda a parafernalha necessária para se cuidar de um cachorro e já levou alguns brinquedinhos pra quando ele crescesse um pouco. Apenas alguns dias de vida, os olhos haviam acabado de se abrir. Deu o nome de Chuck e aos poucos o animal de estimação cresceu, tanto fisicamente quando no peito do seu até então isolado dono.

Depois de uns meses, ele percebeu porque disseram que o cachorro tinha a ver com a personalidade dele. O cachorro não latia quase nunca, até um pouco taciturno para um filhote. Gostava muito de brincar mas só quando estava perto de quem conhecia, quando não gostava de alguém não fazia questão nenhuma de disfarçar. Uma coisa era fato, se ele latia é porque ia morder - com ele não tinha meios-latidos. Comia de tudo e aos poucos foi conquistando seu espaço à mesa, tinha dia que até escolhia o prato. Quando fazia alguma coisa errada, já ia se escondendo, fazendo cara de coitado pra não apanhar (quase nunca adiantava, mas não custava tentar né?) e colocando o rabinho entre as pernas. O dono sabia que se tinha algum vaso quebrado, xixi no carpete ou marca de dentes no cadeira da cozinha era só olhar debaixo do sofá. Quando ia dormir, fazia questão de ir até a cama do dono dar um beijinho de boa noite. Nos dias de insônia, tinha um companheiro que tentava ficar acordado junto, mas acabava dormindo ao pé do sofá.

Ele, o dono, aprendeu aos poucos como era não apenas se preocupar e cuidar de à distância, sem se envolver. Ele viu como é compartilhar a vida com alguém, como é ser compreendido no silêncio e também entender pequenos gestos. Nada daquela filosofia clichê de "aprenda a ver o raio de sol atrás das nuvens cinzas" ou "elogie e aproveite as pequenas coisas" - diga-se de passagem ele sempre odiou essa ladainha toda. O fato aqui era real - no dia a dia, ficando nervoso com algumas atitudes, felizes com outras, grato por ter um companheiro para andar no parque ou assistir algum filme de madrugada. A vida real não dá margem pra romance cheio de firula, até o mais bem sucedido dos homens pode ser um miserável entre as quatro paredes do seu lar. E, graças ao seu novo amigo, ele estava aprendendo a deixar de se sentir assim. Sentimentos dessa estirpe não são extintos por terceiros, sejam humanos ou caninos.

E a primeira muralha começou a cair e aos poucos ele aprendeu a aceitar um convívio mais próximo com seus amigos humanos e até com outros conhecidos que outrora não tentaria nem fazer contato. Ele percebeu que nesse desespero de se proteger, ele acabou se trancando pra fora.

Se essa era a primeira, quantas mais teriam de cair para que aquilo que era tão hermeticamente guardado ser revelado?

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Usually they come in pairs

All good things must come to an end and bad things must come altogether in a stomping herd.

Crying might last for a night, but with morning come joy. In life, there are just as many nights as days. Come on, just read the lines in between.

It's a solar eclipse season and if it was possible, the sun would definitely be hiding before the moon and all the other planets.

Pictures usually make me sad. Some make me sadder.

Parties usually make me feel cumbersome. Actually it is just because somehow I feel bad 'cause I just can't celebrate at all.

It's like listen to the sound but cannot feel the rain.
Trapped inside with no shackles and locked doors. Prison and prisoner.

It's a slow fade. Standing or sinking?

Denervating

- So, it's been quite a while since I read something from you.
- You know, I used to write a lot because I did not have someone that I could talk to. Now that I have, there is no reason to write.

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Should it change, I could say otherwise.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

El camiño

Vez ou outra, a dualidade de ser humano irritava o jovem aspirante a adulto. Apesar de buscar aprender e crescer para se tornar alguém que valia a pena ser lembrado, via-se repudiando as consequências que a tal da sabedoria (conhecimento posto em prática, como ele mesmo definia) trazia. Cada passo para frente apenas indicava que ele estava mais longe ainda de onde deveria chegar - uma sensação horrível de andar pra trás, apesar de saber que ia adiante. Não teria como negar o avanço pois na caminhada, tanto o caminho como o modo de andar foram mudando e com isso muito se perdeu e muito se ganhou.

Outra questão que martelava a sua consciência não-tão-tranquila era o fato de perceber apenas agora que a jornada era pessoal. Antes, quando estava no início da caminhada, andava junto com tantos outros que chegava a dizer pra si mesmo que eram deles que ele tinha que ganhar, ser melhor, estar à frente. Mas com o passar dos passos, e os caminhos se polifurcando e cada um seguindo sua trilha, as companhias se tornaram mais escassas. A bem da verdade, parecia que a quantidade de companheiros de jornada era indiretamente proporcional ao número de bifurcações no caminho - aliás, esse foi outro ponto que ele percebeu. Lá no começo, o caminho se divide em inúmeros outros enquanto depois de outros passos, as divisões ficam quase sempre nas bifurcações (e a certeza de certo e errado se torna mais evidente em cada divisão).

Nunca foi adepto do maniqueísmo quando se tratava de natureza humana - lutar contra o "mal que há em si" é mais eficaz do que simplesmente negá-lo. Mesmo na luz, a gente continua projetando sombra neste mundo. E lá está a inevitável prova de que em nós as duas pontas coexistem. Nele, sempre em pé-de-guerra. Na caminhada os passos vão se tornando cada vez mais pesados e, assim as marcas das pegadas no solo deixam de ser algo a ser levado pelo vendo e se tornam até alvo de estudo dos antropologistas da vida (no sentido original, o que estudam o homem). Uma vez ouviu: "Ir onde nenhum homem jamais foi" - grosso modo, caso não paremos de caminhar, todos chegaremos a um lugar que nenhum outro homem já foi.
De repente essa é a diferença entre sucesso e fama - chegar onde ninguém foi mas apenas você quer ir é sucesso. Agora chegar onde ninguém foi e vários querem ir é fama - não que não seja sucesso também, mas a parte enaltecida é a fama. Na mídia quase nunca se vê história de pessoas de sucesso mas sim de pessoas de fama.

O problema dele era o foco. Assim como as discussões que começam com um assunto e logo discorrem pra outro, se não tomarmos cuidado podemos acabar andando fora do caminho. E, como sempre falou seu velho pai: "Se há algo que é pior que estar no caminho errado, é estar fora do caminho". Quando no caminho errado, de certo modo, ele sabia o caminho de volta para "fazer certo". E ele sabia também que todos já desceram uma ladeira errada ou fizeram conversões proibidas. A questão é que fora do caminho é terra de ninguém. E se é de ninguém, definitivamente não é sua. Ou minha. E era essa falta de foco que fazia com que ele trilhasse vez ou outra no ermo dos entrecaminhos. Uma trilha nunca será um caminho.

E toda essa volta cai em uma questão - a sua falta de foco o fazia batalhar com a dualidade. Falta de foco pois não sabia se queria ir pra esquerda ou para direita. Falta de foco pois não sabia se queria ir além ou aquém. Falta de foco pois não sabia se queria continuar e arriscar perder os seus comparsas ou se queria parar e arriscar ser perdido por eles. A dualidade implica que temos que sempre considerar as opções por duas perspectivas - a positiva e a negativa, por assim dizer. E por isso ele resolveu recapitular as suas acepções durante o caminho:

1) Grandes grupos -> Pequenos grupos -> Pares -> Um
2) Conhecimento -> Prática -> Sabedoria
3) Certo? Errado? -> Certo! Errado!
4) Um caminho -> Diversos caminhos -> Dois caminhos
5) Pegadas leves e deléveis -> Pegadas pesadas e marcantes
6) Passos largos -> Passos estreitos -> Andar "pra trás"
7) Sucesso coletivo -> Sucesso individual -> Fama

Cada item era um caminho a ser traçado - o fato é que em alguns deles iremos até o fim, em alguns até o meio e em outros nem colocaremos o pé.

Às vezes, somos sobrepujados pelas nossas personagens.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Too tired for fury

1.
Sometimes the glass is half-full (when in wednesday, you think there are only two days to saturday), sometimes is half-empty (when in wednesday, you think there are still two days to saturday) and sometimes the glass is broken and you just stepped on it (when in wednesday, you are upset because there are only 4 days to next monday). When you're not excited even on fridays, something has got to be wrong - glass broken, stepped on it and now I have to walk in salt and lemon to get back home. Superb.

2.
It surely feels like hell-on-earth lately. The temperature is around 30-35ºC everyday, and inside the mandatory corporate straitjacket, I bet it rises to around 45ºC. Sometimes the weather agrees with our life moment. No, it´s nothing like "rainy days and mondays always bring me down" - although I do agree with the "mondays" part. To be honest, it seems that my week is composed of 5 mondays and then the weekend. And the straitjackets are the walls of this place that can surely bring a grown man down. What to say about a growing one? I have the inbetween.

3.
And my arms are not turning into salt and giant ants are not eating the flesh out of my scalp. What also bothers me is that the faith index is just as stable as the stock market.

4.
We are changing our location here in the building - up we go, 5 floors above. While boxing all the documents and labeling stuff, I wished I could box me out of here. But then again, I must be able to think out of the box. And I am out of stamina and box-expressions. And it's quite "nice" when you don't know whether you have another day or not - I also hate the feeling of not knowing where (and when) to go, even if it is inside the building.

5.
I wonder why I don't fit in. Maybe it is because I don't dance according to the song. The legs sometimes get tired of walking my way on this weird path. I don't do like the romans in Rome. Not that I am trying to make a revolution or impose my way over others. I just don't care. I like swimming against the current not because I want to be different. It just happens when I disagree. Walking right even if the path is wrong.

6.
It's quite soothing the feeling. As each sentence is dropped by in here, it's like some weight is lifted and I can walk more freely. I even rehearse a smile.
Although I believe it is just because I am soon to leave the office and head home for a promising weekend, just let me think that the lines are responsible, sometimes it happens on mondays and the weekend is so far away.

7.
As God did, so shall I. In the seventh, we rest. It's my (our) day.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Vitrines, Pechinchas e Abacaxis – Um pouco sobre relacionamentos

Se você não vive em Cuba ou na Coréia do Norte, a visão capitalista faz parte da sua vida - independente do posicionamento individual em relação ao sistema financeiro. Os conceitos de custo de oportunidade, investimento, oferta x demanda, monopólio, dentre outros fazem parte do cotidiano da nossa sociedade orientada pelo consumo. O consumo é a base da sociedade capitalista e o seu crescimento decorre de inúmeros fatores - status, marketing, necessidade, etc.

Geralmente, em nossas compras diárias, buscamos no mínimo a sensação de termos pago o preço justo - seja em um tênis, numa refeição, em uma bugiganga qualquer. Há também as duas variáveis da "compra justa" - a pechincha e o abacaxi. A pechincha é quando a percepção de valor excede o preço pago, ou seja, quando pagamos "menos" do que o produto vale na nossa perspectiva. O abacaxi é a ponta oposta, quando se paga demais por algo que não vale tanto. A pechincha pode ser decorrente de uma oportunidade (como uma liquidação ou a visita fortuita em um site/local) ou do esmero da pessoa (o ato de pechinchar, "chorar" por um preço mais em conta). Igualmente o abacaxi pode ser decorrente de um engano (quando o produto frustra a nossa expectativa, pois no momento da compra parecia justo) ou simplesmente da necessidade (como comprar capa de chuva em estádio - você vai pagar mais do que aquele pedaço de plástico vale).

O motivo pra comentar sobre os nossos hábitos de consumo é que em sua mecânica, eles se assemelham muito ao modo como nos relacionamos com as pessoas - ao menos no momento em que as conhecemos. Nós olhamos a pessoa, analisamos as características, vemos o que deve ser investido para conhecê-la e decidimos se vale ou não a pena investir. Partindo desse conceito, cada amizade feita seria uma "compra" e cada consumidor tem um modo diferente de fazer compras, seja este definido pela personalidade da pessoa (fatores internos) ou pela condição externa, como sociedade, valores, condição financeira, etc.

Portanto, considera-se doravante que "compra" é o ato de fazer contato social. Apesar de ser complicado considerar que se "compra amigos" por trazer uma idéia negativa, precisamos nos desvencilhar do significado já solidificado e criar um novo conceito para a idéia de compra. Investimento é o recurso despendido para conquistar o relacionamento - seja o custo de deslocamento ou o tempo gasto (e as suas decorrências). O texto trata-se, portanto, de uma teorização do relacionamento humano por intermédio do uso de analogias combinado com um exercício de descontextualização de um conceito outrora inadaptável.


Compra Específica x Compra Espontânea

Um dos modos de identificar que tipo de comprador nós somos é pela classificação dos tipos de compra que temos. Em linhas gerais, pode-se dividir a compra em duas características: específica e espontânea. Cada qual com seu tipo específico de loja, posicionamento e mercado alvo. Uma questão, porém, que se repete nos dois estilos de compra é o fato de que quando se espera gastar uma grande quantidade de recursos ou se o produto a ser adquirido possui alto valor perceptível é que há uma interação antes da compra.

Explico: quando se compra algo importante, não simplesmente olhamos pela vitrine e já compramos sem ao menos ver - queremos perguntar os detalhes, saber como funciona, pegar na mão (mas se pegar na mão e quebrar, tem que levar). Se a compra é realmente importante, há investimento. Para todos os efeitos, em relação a relacionamentos, as compras sem interesse (viu e comprou) são desconsideradas. Afinal, não consideramos relacionamento quando não há interação. "Pegar" alguém na balada ou conversar com alguém na fila do banco, por exemplo, não é considerado uma "compra".

Mas voltando à característica que define a compra, em relação ao local e o posicionamento das lojas, há diferenciação. Enquanto o específico prefere lojas especializadas e posicionadas em locais mais reservados ou de acesso restrito, o espontâneo busca lojas de produtos gerais e de acesso mais fácil e rápido. Exemplificando, pode-se dizer que o específico é aquele que busca uma loja de charutos em algum reduto do centro da cidade e o espontâneo aquele que anda em complexos de lojas (como shopping centers) ou lojas de departamento. Outro ponto que pode ser levantado é que em relação às lojas virtuais, os espontâneos tendem a buscar os sites/ferramentas que possuem maior abrangência de contatos (flickr, orkut, msn) enquanto o específico busca sites menos conhecidos (blogues especializados em certo tema, fóruns de discussão com acesso restrito). Já nas lojas físicas (bares, baladas, clubes), os espontâneos tendem a não criar barreiras para eventuais compras e em alguns casos vão com esse propósito em mente, enquanto os específicos dificilmente vão com o intuito de comprar - a não ser que o produto já seja previamente conhecido.

Por fim, o comprador específico costuma ir sempre direto ao ponto e raramente se depara com alguma oportunidade ou surpresa para uma compra "fora dos planos". Quanto ao espontâneo, por dificilmente ir à busca de algo pré-definido, aumenta exponencialmente a sua gama de oportunidades e assim se expõe para mais surpresas e novas compras - obviamente que com essa postura, há também um maior risco. Em relação a isto, não há posicionamento correto - geralmente o contraste entre ir direto ao ponto ou "ir à passeio" existe em toda pessoa, o que define é o momento vivido e o estado de espírito.

Pechincha x Abacaxi

Como já dito no início do texto, a compra pode ser pechincha, abacaxi ou de preço justo - sobre relacionamentos, raramente existe coisa como "preço justo" em um compra. Ao fazer contato para dar início ao relacionamento, geralmente se resulta em abacaxi (quando se investe mais do que deveria) ou pechincha (quando se investe menos do que realmente vale). Preço justo geralmente ocorre quando compramos algo que já conhecemos (o que não se aplica a início de relacionamentos) ou quando não há interesse/expectativa na compra. Há também em cada uma das vertentes, dois tipos de subcategorias: a pechincha pode ser por oportunidade ou por esmero; já o abacaxi pode ser por engano ou por necessidade.

A pechincha oportunidade seria o melhor cenário - ocorre quando não se está procurando nada em específico e se consegue uma grande compra por estar no lugar certo, na hora certa. A pechincha esmero é aquela que ocorre depois de "chorar" o preço - no relacionamento, a pechincha por esmero pode ser nociva pois ela põe à frente o investimento ao invés do valor da pessoa, ou seja, o foco é egoísta. O abacaxi engano é aquele que surge das boas intenções - a pessoa acredita e decide investir em uma compra e o resultado é catastrófico. Já o abacaxi necessidade é aquele que resulta de uma atitude centrada em si, por uma necessidade própria (seja ter muitos amigos, auto-afirmação, massagem no ego, etc). Assim, dispõe-se a gastar conscientemente mais do que o valor percebido na mercadoria - este é o pior cenário e, geralmente, com as piores consequências (por exemplo: decepções com amigos falsos, rolos intermináveis, amores unilaterais e etc).

No início, somos capazes de classificar com precisão todo e qualquer relacionamento. Reitero que essa análise é feita no começo de qualquer interação visando relacionamento - no decorrer do tempo, boa parte dos relacionamentos tendem a cair no preço justo, afinal aprendemos a investir corretamente. Mas há sim, algumas raras pechinchas que se tornam abacaxis e, mais raros ainda, abacaxis que no longo prazo se tornam pechinchas.


Considerações Finais

Ao contrário de uma compra normal, há a necessidade de levarmos em conta que nesse cenário sempre atuamos os dois papéis - somos ao mesmo tempo comprador e mercadoria. Estamos falando de comprar uma participação na vida da pessoa e, ao mesmo tempo, vender a ela uma participação na sua vida. Por esse motivo, é recomendável saber o preço depois. Saber o preço antes faz com que se crie foco em quanto se gasta (investimento) ao invés de quanto se ganha (valor). E automaticamente cria-se o mesmo padrão na pessoa - ou ao menos abre precedente para que isso ocorra. Trocando em miúdos, uma pessoa cresce em valor quando se está disposto a "pagar mais do que ela custa. Por consequência, ela também se dispõe a investir mais.

E nessa vida em que passeamos do lado de fora e dentro das vitrines aqui e acolá, temos que saber escolher bem as nossas compras não só por aquilo a se investir, mas por aquilo a se oferecer. A (terrível) beleza deste mercado é que os dois lados escolhem, negociam, chegam a um veredicto. (Obviamente, há pessoas com mais "habilidade" que outras, seja para vender ou para comprar). Para bom comprador, não basta ter apenas uma boa vitrine - é preciso também ter qualidade, durabilidade e identificação. Mas vale lembrar que uma má vitrine pode fazê-lo desistir.

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Agradecimento especial ao ilustre Flávio Oota pela colaboração imensa para criação desse texto.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

O espelho e a 1ª pessoa singular

Pre Scriptum

A jornada naquilo que se vê no espelho é um dos passos rumo ao autoconhecimento. Todos possuem seus conflitos e desconfianças em relação ao que é apresentado de modo tão claro e ao mesmo tempo tão enigmático. Em algumas palavras, tento mostrar o início da minha jornada e como descobri que mesmo no caminho torto, nós temos que andar certo.

01

"O espelho, no mundo dos signos, transforma-se no fantasma de si mesmo, caricatura, escárnio lembrança." Umberto Eco

O espelho sempre foi meu algoz. Desde sempre, nele eu via algo que não me parecia aceitável. Em momentos esporádicos, tão raros quanto passagens de cometas, eu via algo que me parecia agradável. O espelho é muito mais do que algo que mostra a sua imagem refletida - nele você se enxerga como é. Pelo menos como é pra si mesmo. A "automiopia" pode muito bem enaltecer os vícios e denegrir as virtudes - ou vice-versa. Eu não era alguém diferente - ora enaltecendo vícios, ora virtudes, ao me olhar no espelho, raramente via a mim mesmo. Via meus erros, via as falhas, via a insustentável pressão do tempo, via que não era o bastante - mas não sabia definir para que ou para quem.

Reza a lenda que quebrar um espelho custa 7 anos de azar. Fico pensando quantos anos de azar custa quando quebramos a nós mesmos. Antes, acreditava que o espelho que me quebrava toda vez que tentava o encarar. Depois, percebi que eu me quebrava para não ver o que o espelho tinha que mostrar. E nessa guerra sintática, sendo ora sujeito executando a mim mesmo ou objeto, mas mesmo assim me sujeitando aos impropérios desferidos pelo sujeito, até então oculto, contra o eu que era transformado em cacos. E assim, talvez por medo e covardia, talvez por simples autopreservação, eu me escondi atrás do meu reflexo.

02

"Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... A alma exterior pode ser um espírito, um fluído, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação." Machado de Assis

O fato de se esconder quase sempre não é consciente - ao menos não no estágio em que o caráter ainda está em (de)formação. Quando conceitos são reiterados ou destruídos, posturas revistas e paradigmas quebrados. Nesta época, ficou muito difícil gostar de se ver. A bem da verdade, pode-se dizer que há duas fases - a primeira é aquela que perdura no início, quando saímos do casulo e queremos enfrentar o mundo. Nesta época, quando eu me via no espelho, eu me sentia um ser virtuoso, correto, acima do bem e do mal, intocável, incorruptível. E lá estava eu, quase gritando "para o alto e avante", até descobrir que no mundo real, as coisas são um pouco diferentes. Parece que quando nos viramos de costas é quando o espelho nos mostra o que realmente somos (ou como agimos).




Um extremo tende ao outro e, se um dia eu me vi como super-homem, o meu ego era feito de kryptonita. E assim começou a queda-livre, em todos os aspectos. Tinha meus 19 anos e enquanto o mundo crescia, eu comecei a ruir. E foi ai que começou a introspecção que perdurou até recentemente. Minha perspectiva viciada e viciosa fez com que cometesse erros crassos com muitos, mas principalmente comigo. A figura mudou completamente - no espelho, eu via um pateta enquanto alguns que me cercavam me viam como "pilar de fortaleza". A razão as vezes me dizia que eu não era nem um nem outro, mas o espelho me mostrava que eu era o pior dos humanos e isso erra corroborado em mim pela auto-intitulada (e raramente combatida) degradação da aparência. Vertigem. Do (meu) zênite ao (meu) nadir. A pior parte é aceitar a necessidade de se ver de novo – eu tinha vergonha, frustração, raiva do reflexo a ser visto no espelho. Aos meus olhos que há muito não buscavam meu reflexo, seria uma atividade hercúlea galgar os degraus de volta a ser alguém que valia a pena de ser visto. Mas aos poucos eu me levantei e das minhas entranhas tirei forças para perseguir aquilo que eu queria ser.

03

"Olhos bem abertos, quase dentro dos outros, dos iguais, do outro lado. Onde? Ele um dia perguntou-lhe: Que procuras? Apanhada de surpresa, afastou-se, compôs a figura e disse: Nada. Jura que ouviu a outra, também a afastar-se, dizer: Tudo." Licínia Quitério

Depois disso, por um bom tempo, quando me olhava no espelho, via-me de costas, como se sempre estivesse atrás daquilo que teria que ser. A imagem perdurava em minha mente pois independente do que fosse feito, eu sempre estaria um passo atrás daquilo que gostaria de ser. O mundo inteiro era refletido tal qual era e, de certo modo, eu também. Ali eu via a minha realidade, minha sina, meu destino, meu maior obstáculo. A minha razão gritava, ecoando em minha existência, que o que deveria buscar era ver de frente, face a face. Mas uma outra voz também falava, apenas audível para os ouvidos que descrêem, que eu não deveria ver o que eu havia me tornado. Que era vergonhoso, que traria sofrimento, decepção. Que eu me recusava a virar de frente, mesmo no reflexo, pois não queria que ser visto pelo que sou. Que queria esconder as marcas que foram deixadas. Marcas que apenas sentia, mas nunca fui capaz de mostrar, nem ao mesmo para mim mesmo.




Nesse diálogo entre o reflexo e eu, entre as razões conflitantes, apesar dos questionamentos, eu não queria achar uma resposta. Eu só queria mesmo parar de questionar. Parar de colocar em voga aquilo que ficou no passado, de destacar as dúvidas em detrimento às respostas que já tinha. Se as questões permanecem mesmo quando as respostas já são conhecidas, há alguma coisa errada. E percebi que na verdade o que estava acontecendo era que o que era visto não era o reflexo do que eu era de verdade e sim o reflexo de um reflexo. E por isso não havia saída, uma linha de questionamentos intermináveis. Assim como um espelho posto na frente de outro, um sempre vai tentar mostrar para o outro o seu lado, ad infinitum, sem achar consenso.

Reflexos não mudam, não aquiescem. Não há paz nem solução. Essa epifania levantou um questionamento que precisava ser resolvido - se o espelho mostra um reflexo de outro reflexo, onde estava o verdadeiro eu?

04

"Por acaso, surpreendo-me no espelho: Quem é esse que me olha e é tão mais velho que eu? (...) Nosso olhar duro interroga: 'O que fizeste de mim?'" Mário Quintana

Aprendi que o espelho não mente. Ele mostra exatamente aquilo que é apresentado à sua frente. Os olhos também não mentem - eles capturam a exata imagem daquilo que foi refletido. Nós mentimos. E de tanto mentir pra nós mesmo, pra mim mesmo, acabamos usando nossos reflexos criados como máscaras, como aquilo que apresentamos para ser refletido. Hoje não me vejo mais como super-herói ou pateta, não me vejo de costas nem de lado. Vejo-me de frente e vejo o que sou. Sem romance, sem ficção, sem idealismos, sem preconceitos. Hoje não vejo mais a "beleza" ou a "juventude" que lá estava alguns anos atrás, que via vez em quando em momentos de rara lucidez.

A priori, obviamente interrogamos, tentamos explicar ou justificar o porque de tantas mudanças - vida desregrada, falta de tempo, descuidos mil. Como se o reflexo real perguntasse para mim o que eu tinha feito para deixar chegar a este ponto. Contudo, vi também maturidade que antes não havia, sinceridade e profundidade que havia apenas nos conceitos ou até nos livros que eu sempre li. Nesse quesito, Lavoisier acerta em cheio - nada se perde, tudo se transforma. Talvez o que o externo tenha "perdido", o interior acabou "ganhando". No fim do dia, no fim da vida, eu sou eu.

Percebi que não há mal em desgostar um pouco do que se vê, contanto que isso não te faça desgostar do que se é. E, por mais clichê que possa parecer, gostar do que se é é a base para se mudar o que se está. Antissociais (respeitando a nova ortografia) podem começar a fazer amigos, misantropos a gostarem de gente, gordinhos podem emagrecer, nervosos podem se tornar mais calmos. E tudo isso começa com ver a si mesmo, a mim mesmo no espelho.