quinta-feira, 23 de abril de 2009

Solve et Coagula

Véspera de feriado, pouco depois das nove da noite. Olhar fixo no caminho, não ousava fazer contato visual. Trajado de modo peculiar, com a calça jeans surrada, a camiseta de malha e a mochila nas costas. Nas mãos, um livro para ler até chegar sua vez no guichê de comprar o ingresso para o cinema. Ele, obviamente, iria terminar a noite do mesmo modo que começou - sozinho. Já fazia tempo que deixara de acreditar que encontros fortuitos aconteciam. Isso era coisa do cinema e ele tava muito longe de ser protagonista de obras da sétima arte. Mas na vida real, ele sempre cumpriu bem seu papel. Nada que rendesse um Oscar. Talvez um festival de cinema independente aqui ou ali.
Era, sem dúvida, um tipo diferente. Mas, assim como havia deixado de acreditar na chance de encontrar ao acaso alguém interessante, também deixou de acreditar que estava sozinho no mundo. Talvez um pouco mais tarde do que havia admitido, mas mesmo assim. Não era o único que lia livros na fila do cinema (mesmo que fosse naquele cinema), não era o mais tenebroso dos seres humanos, não era o mais misterioso, não era o mais desprezível nem o mais amado. Era, como a maioria dos seres humanos, alguém comum. Um amálgama, há quem diga mal-feito, de diversos fatores que formavam aquele indivíduo, mesmo que não desprezível, ainda sim desprezado, não visto e deixado de lado. Nada que o incomodasse, afinal, ele estava fazendo exatamente o mesmo.
Viu-se em uma posição familiar. Talvez porque também guardasse certo desprezo por si mesmo. Desde jovem, sempre viveu naquela velha história de estar entre os melhores alunos, melhores profissionais, melhores empregos, melhores salários, melhores notas. Viu-se, mais do que nunca, frustrado e ridículo, um misto de vergonha e covardia que comia suas entranhas. Alguém que se contentava com a média, com apenas passar de cá pra lá.
Mas reconhecia seu potencial, uma capacidade além da média de fazer algo, mesmo sem identificar qual potencial e quais "algos". Reconheceu também que esse potencial fora explorado anteriormente, porém sem preparo para que pudesse ser desenvolvido e tirado o máximo dele. Como os atletas que não se preparam devidamente pois devem jogar para que a torcida se anime e eventualmente acabam contundidos, obrigados a se contentarem com uma carreira medíocre vivendo do passado ou, até mesmo, obrigados a se aposentarem precocemente.
Vez ou outra tinha estes momentos de reflexões, alguns raros com epifanias, mas este fora estranho, alheio a todos os outros. Viu-se não tão velho a ponto de desistir, mas não tão novo a ponto de abrigar-se na segurança do amanhã. Viu-se não tão medíocre a ponto de embrenhar-se na mata do ordinário, mas não tão extraordinário a ponto de elevar-se acima de todos. Viu-se não tão rápido, como quem busca a todo custo atingir um alvo, mas não tão lento a ponto de confundir a letargia com paralisia. Talvez, pela primeira vez em anos, viu-se. Uma visão não poluída pelas bajulações, enaltecimentos, críticas infundadas, descrenças e auto-destruição. Viu-se não através da janela ou no reflexo de um espelho, viu diretamente - acreditou que esse processo lento de destuição de barreiras tenha valido a pena. Mesmo não sendo aquele menino que era encarado por olhos admirados, ainda sentia em si a centelha abrasando o peito aparentemente oco.
Viu-se novamente acreditando em ser professor, escritor, conselheiro e representante. Viu a fé que crescia em si. Fé em si mesmo. E jurou que ia atrás, ia se preparar, treinar para poder usar esse talento, esse dom. Por ora, permaneceria ainda escondido, afinal, não gostava de mostrar rascunhos para o mundo. O livro em suas mãos reforçava sua idéia de apenas publicar o que estivesse pronto, respeitando todas as etapas. Talvez sua obra-prima não fosse um livro, um tratado. De repente, seria a própria vida.
Finalmente chegou ao guichê e decidiu adiar os planos até que o filme acabasse.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

O pouco que me resta

Romântico veterano, invertebrado
Mesmo assim, um arquétipo bem articulado
Sem artimanha, nem armadilha
Sem prumo, nem rumo
Sigo a trilha

Romântico treinado, vacinado
Contra raiva, contra-ataque
Contraído, ora distraído
Sem eira, nem beira
Beira-mar, profundo
Mas no fundo, não deixei
Sigo a acreditar

No quarto e no bolo
As velhinhas velam e se apagam
Caquéticas e esqueléticas
Antevendo o inefável destino

A vela e o dente
Vencidos pelos anos
A chama perdida e o doente
O tempo segue fugaz
Sigo atrás, sem mais
nem menos