segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Essência e Espelho, Real e Percebido

No último texto, foi discutido um pouco sobre os conceitos que validam a percepção de valor que o mundo (ou a sociedade) tem sobre cada pessoa ou, numa definição mais ampla, o valor percebido de cada função. Apesar de buscar a compreensão desses conceitos e a tentativa de adaptação para subsistir sob tal domínio, não há como deixar de lado o fato preponderante nesse debate - o fato de que esses conceitos tornam doente a vivência social e aos poucos minam a capacidade de destacar a identidade única que cada pessoa tem e o real valor que isso tem, não apenas para o mundo, mas em uma escala mais elementar, para si mesmo.

Quando escrevo, tento sempre fugir da tônica pessoal, procurando mostrar a perspectiva de um observador. Medida adotada para evitar poluir a mensagem a ser passada ou impedir uma maior identificação do leitor com o texto. Mas, para não me perder na densidade das palavras que se mescla com a minha incapacidade de melhor expressar a mensagem quero passar, usarei uma espécie de relato pessoal entrelaçados com máximas de conhecimento comum. Creio que deste modo eu consiga atingir meu objetivo, apesar das dúvidas em relação a integridade do cumprimento da missão.

A discussão sobre o valor percebido pelo mundo/sociedade me trouxe à minha atual condição que, de alguma forma, é também a condição de alguns dos meus amigos. E a questão com a qual me deparei é: Até que ponto a nossa percepção de nós mesmos é ferida quando não nos encaixamos nos valores impostos na esfera maior?  Em outras palavras, até que ponto nosso valor real é diminuído quando nosso valor percebido é reduzido? E foi essa questão que me levou a uma tentativa de análise por outro prisma, com o enfoque naquilo que se perde, ou se esconde, em cada pessoa antes que sejam ditas as palavras e executadas as atividades a cada um atribuídas.
 
Para todos os efeitos, eu era um cara valorizado na perspectiva da esfera maior. Formado e pós-graduado, trabalhando e ganhando um bom salário, carro na garagem. Enfim, desfrutava das supostas regalias que o status aparente me trazia. Até o meio do ano passado, quando decidi pedir demissão. O motivo era que eu não me sentia realizado no emprego e que isso estava transbordando para outras áreas da vida, como se isso não fosse óbvio. Passado o período de euforia após a decisão "tresloucada", a angústia começou a bater. Não porque a situação começou a complicar - o planejamento foi bem cuidadoso para o tiro não sair pela culatra. A angústia originou-se do fato de que pedir demissão não aplacou o mal que me acometia. Em suma, eu acabei agindo sobre um efeito e não sobre a causa. Além disso, a percepção do mundo mudou muito a meu respeito - deixando de ser exemplo para virar estatística. E isso me fez ficar chateado algumas vezes ou até envergonhado. Senti que havia sido abalado, temi ter tomado a decisão errada e, depois de tantas negativas dos processos que me engajei, comecei a questionar a minha capacidade e o meu valor.

Resolvi então pisar no freio e aproveitar o tempo livre para buscar o que eu gostava a meu respeito e que havia perdido nos últimos anos. Retomei alguns hobbies, a minha fé, alguns amigos e, principalmente, alguns hábitos. Percebi que o que foi retomado não se tratavam de caprichos juvenis que foram abandonados pela "maturidade dos anos", mas sim partes elementares que me compõe como ser. O que me fazia mal na minha vida não era o emprego ou o receio de ter tomado as decisões erradas - era o fato de que eu estava abrindo mão do que eu era na verdade para me apoiar e abraçar o que eu representava na esfera maior. Causa identificada e o alívio proveniente disso não é algo temporário como a morfina. Alívio de cura. O que estava sendo asfixiado alguns chamam de criança interior, eu prefiro chamar de essência.

Veja bem, não quero aqui fazer apologia a qualquer corrente de pensamento que diz que o trabalho não deveria existir, que o importante é ser feliz mesmo que se afogando em dívidas ou nada de pensamento age-of-aquarius-new-age-hippie-ish. Reitero o que foi escrito no texto anterior, temos que aprender a viver na sociedade como ela se apresenta se há o desejo de mudá-la ou melhorá-la. Percebi que o problema reside justamente quando a essência acaba tendo que se tornar a tal da "criança interior". A nossa essência é algo que é bem latente quando somos mais novos - sempre idealizando, viajando, sonhando. Na cabeça dos pequenos, não há limites, todos podem ser astronautas, jogadores de futebol, médicos, mágicos e até super-heróis. Mas aí chega a idade adulta e preferimos abrir mão dessa essência para abraçar o prático. E isso não tem nada a ver com escolha de carreira profissional - mesmo perseguindo os sonhos, uma hora nos deparamos com a necessidade de mudar as prioridades. Forma-se uma camada doente, pessoas inócuas que não respondem mais ao que realmente são, mas apenas à esfera maior.

Numa tradução livre de Lucas 18:17, está escrito "quem não tiver um coração como de criança, não poderá desfrutar o melhor que foi preparado pra nós". Ou seja, aquele que abre mão da sua essência está fadado a viver uma vida medíocre (mesmo que aos olhos do mundo pareça ser um grande sucesso). O que acontece é que ao invés de amadurecermos também a nossa essência, nós a apelidamos de criança, os planos viram sonhos, as idéias meros vislumbres do que não será. O que precisa ser feito é que a essência que nos forma deve nos acompanhar e crescer conosco.
Não se trata de idéia de auto-ajuda que diz que o segredo é mentalizar, ter pensamento positivo, acreditar e tudo acontece. É furada. Acreditar e confiar infelizmente estão sujeitos à uma série de outros fatores que nunca apresentarão firmeza o bastante para ser base de algo na nossa vida. Uma das questões levantadas no último texto foi sobre mudar o mundo. Gandhi falou que para mudar o mundo basta mudar a si mesmo. Nós temos que conhecer e reconhecer a nossa essência - ela não muda com o tempo. Mudar a si mesmo, acredito, trata-se de amadurecer essa essência ao ponto de que independente do que aconteça na sua vida, você nunca deixe de saber quem você é.

A nossa posição no mundo, nossa auto-confiança, nosso valor, nossas crenças, até a nossa existência, para se manter constante deve estar firmado em algo que possua firmeza. Não é uma tarefa fácil e as pressões e necessidades que temos tentam de qualquer modo nos diminuir (ou exaltar) com base em falsos conceitos, em bases mutáveis e corrompíveis. Mas é uma tarefa necessária para os que não querem viver sempre se questionando. Posso dizer que as minhas dúvidas e apreensões (que continuarão existindo) não tiram mais a minha paz. Sou cristão e atribuo muito da minha mudança à presença de Deus na minha vida, mas não acredito nessa história que basta jogar na mão dEle e esquecer. Santo Agostinho disse que "devemos orar como se tudo dependesse de Deus e trabalhar como se tudo dependesse de nós mesmos". E, até a fé que tenho nEle, se não baseada na ciência do que sei (e não apenas acredito), acaba sendo levada de um lado para o outro como as folhas pelo vento. Tudo reside na constância - mas isso é tópico para outra discussão.

A resposta que encontrei até o momento é que a nossa essência, o nosso valor real, só será reduzido quando nosso valor percebido é diminuído se optamos por sermos percebidos pelo que representamos e não pelo que de fato somos.

Este texto não está acabado pois sei que sempre haverá como crescer e amadurecer. A minha visão é como a que se tem em um espelho - vejo apenas o meu reflexo. Mas agregando a visão de amigos, familiares, colegas de trabalho, Deus, pessoas que gostam da gente, pessoas que não gostam, eu serei capaz de ver um pouco mais de quem sou. Como Paulo disse em I Corintios 13:12, "porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido." Para conhecermos a nós mesmos, temos que conhecer os outros também. Aristóteles estava certo quando disse que o homem é um animal social, assim como Davi quando no Salmo 131 diz que "é bom e suave que os irmãos vivam em união".