terça-feira, 31 de agosto de 2010

Memória seletiva

Já esqueci aniversários, mas fiz questão de ser presente.
Já esqueci compromissos, mas cumpri minhas promessas.
Já esqueci de terminar frases, mas comuniquei minhas idéias.
Já esqueci nomes e rostos, mas me lembro de regravar.
Já esqueci a toalha, mas nem por isso deixei de me banhar.
Já esqueci de ligar, mesmo me importando pra valer.
Já esqueci de enviar, mensagens que acabei por arquivar.
Já esqueci de ajoelhar, mas não deixei de orar.
Já esqueci de pagar contas e aprendi a me acertar.
Já esqueci do medo, mas ele sempre tenta recordar.
Já esqueci como se esquece, pra logo lembrar de novo.
Já esqueci do som da tua risada, mas mesmo assim sorrio.
Já esqueci do teu rosto, mas lembro das tuas histórias.
Já esqueci de me preocupar e não me arrependi.
Já esqueci de deixar pra lá o que não me faz crescer.
Já esqueci o ritmo, mas a letra sei de cor.
Já esqueci do orgulho para me lembrar de perdoar.
Já esqueci de te contar, mas quis compartilhar.
Já esqueci de olhar pros lados, mas não deixei de atravessar.

Já esqueci de tanta coisa, mais até do que consigo lembrar.
.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Confusão, Maniqueísmo e Gangorras

Numa época de tamanho liberalismo (que é tão banalmente confundido com liberdade), a linha de pensamento atual diz que não podemos reprovar nada. Confunde-se aceitar tudo com respeitar as diferenças. Confunde-se uniformidade com unidade.

Taxa-se de intolerantes os que defendem o certo e criticam o errado. Mas, intolerância é viver sem tentar aceitar os nossos certos e errados. Afinal, se não conseguimos enxergar e reconhecer onde temos que mudar e melhorar, estamos fadados a uma vida sem real rumo proveitoso.

Vejo sinais trocados, mensagens mal entendidas e percepções equivocadas.
Vejo conceitos invertidos, valores pervertidos e ressentimentos retidos.
Vejo que muito se confunde:

Força com independência
Compromisso com excessividade
Cuidado com carinho
Atenção com afeto
Opiniões com promessas
Respeito com formalidade
Impaciência com desinteresse
Silêncio com distância
Diversão com futilidade
Aparência com rótulos
Objetivo com propósito
Potencial com capacidade
Flexibilidade com irreverência
Segurança com rotina
Coleguismo com amizade
Concordância com cumplicidade
Postura com status
Tranquilidade com negligência
Vontade com necessidade
Admiração com dependência

Mesmo parecendo tópicos distintos, no dia a dia migramos entre eles como o subir e descer da gangorra. Mas, nesses casos, o real equilíbrio está quando colocamos o peso apenas de um lado e não no tal do meio termo.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Cacos de vidro, orgulho ferido

Muitas vezes, ao olhar para o passado, vemos situações das quais nos orgulhamos e também situações das quais temos certa vergonha. Não quero nem tocar no mérito de que em algumas ocasiões, quando ainda nos falta uma verdadeira noção das coisas, acabamos nos orgulhando de coisas das quais deveríamos nos envergonhar e vice-versa. Também não vou mencionar a questão de arrependimento e culpa, que muitas vezes também aparecem quando olhamos para trás. 

Mas nós olhamos, todavia. Um homem sem história é um homem sem base e, inevitavelmente, sem futuro. Para apoiar nosso presente e gerar um futuro melhor, devemos olhar para trás. Por isso apenas.

Ao tentarmos acertar as pontas e arestas, pegamos primeiramente os problemas gritantes, as falhas homéricas e os erros crassos. Do mesmo modo quando se vai limpar os cacos de vidro de um copo que fora quebrado, primeiro se recolhe os cacos maiores. Assim fazemos também para nos (re)direcionarmos em nossas vidas - analisamos os grandes "cacos" para (tentarmos) corrigir ou consertar a nossa vida. Não se trata de algo tão grandioso ou filosófico - pode-se, por exemplo, ao se passar mal por gula, olhar para os abusos feitos na festa da noite anterior e se policiar para que não coma (novamente) como se não houvesse amanhã. O fato é que o óbvio já está evidente, e partimos dessa etapa para nos acertamos. 

O problema disso é que após acertamos esses problemas, acreditamos já termos acertado as rédeas e nos voltamos para frente para tentar caminhar de novo. Quando quebramos um copo, por exemplo, andamos com cuidado para não machucarmos os nossos pés. Depois de limparmos a região, julgamos estar já livres do perigo e aí nos arriscamos a andar descalços de novo. Faço uma pergunta: o caco que entra no nosso pé nessa situação é o grande ou pequeno? 
O caco pequeno é aquele que permanece no nosso caminho quando acreditamos termos feito um bom trabalho em nossa limpeza. E assim nós fazemos na nossa vida. Acreditamos que nossa postura foi acertada por termos corrigido os grandes defeitos, mas negligenciamos os pequenos cacos e acabamos nos ferindo justamente neles. 

O caco deixado é porque não analisamos aquilo que acreditamos ter feito bem - acreditava até o momento que o caco entrou no pé que a limpeza feita tinha sido boa e todos os cacos tinham sido recolhidos.

Não adianta olhar para trás e ignorar o que acreditamos ter sido bom. Se é necessário que haja uma mudança em nossa vida e postura, não podemos ser enviesados em nossa análise. No que é bom é que se esconde os grandes problemas. Voltando ao exemplo do glutão que passou mal no dia depois da festa - ele pode parar de comer em excesso para não passar mal, mas se não tomar cuidado com o come, mesmo que em pequenas quantidades, pode acabar tendo problemas ainda piores de saúde.

O bom é inimigo do melhor. Por isso, quando olharmos para o passado para acertarmos nosso presente, temos que focar principalmente nos pontos (que achamos ser) fortes, aquilo que achamos ter feito bem.
.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Em um palmo de terra no chão

Cabeça pesada no pescoço sem suporte, ombros não tão largos quanto o fardo a carregar.
Braços doloridos, costas envelhecidas, pernas cedentes e lábios sedentos.
Pés cansados, pisados, apertados nos tênis surrados e enlameados.
Se os joelhos falassem, diriam estar cansados de correr sem se mover. 
No caminho da expectativa, vê-se exausto antes mesmo de se começar a andar.
As críticas não são mais veladas, e o cotidiano deixa de ser novela
A suposta defesa reparte e, por fim, parte. Parte mesmo, sem rumo nem prumo.
O ataque é escasso, o recurso já se esvaiu. Gavetas cheias de inutilidades.

Notável falta de organização. No quarto e na vida, entre quadro paredes contida.
Redução de escopo para evitar o inútil, o vão. E assim vão os dias, recentes e reticentes.
Separando os esforços repetidos nas palavras já re-ditas da recorrente esperança de não agir como criança.
O coração dói pouco, bate menos ainda. Já jaz quadrado e emparedado.
As cartas abertas na mesa não me dão resposta ou desejo de responder.
Está tudo em dia, está tudo em xeque. Súbito, subnutrido.
Dias de Lázaro, dias de Abraão. Contra a esperança e contra o fim.
A percepção invertida - o pouco que antes era destaque, hoje se torna vício e fraqueza.
O pouco que tenho que mal me basta ainda é seu. Sempre foi.

O mundo é tão pequeno quando não se pode crescer.
.