segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Casal comum (Conto)

Era um casal comum, numa situação comum. Mas de alguma forma, no auge dos seus não tão recém-completos 23 anos, muitos ‘comuns’ lhe pareciam extraordinários. Somos humanos e, apenas por isso, buscamos algo que dê uma maior importância às nossas existências irrisórias.

Conheceram-se no colégio: ele, veterano, terceiranista e dono do mundo. Ela fora transferida de outra escolar, um ano mais nova e nova também na cidade. O que ocorreu em seguida é óbvio: como todo pré-adulto, os hormônios se encarregaram de unir da cintura pra baixo e a ignóbil mente adolescente fez o resto - pra parecer mais bonito, a boca falou que era amor e que era pra sempre.

Mas não deixe o amargor do autor impedir que houve sim, beleza naquele encontro. Ambos eram leitores assíduos (ainda que o faziam para ostentar o título de ‘intelectuais) e gostavam por demasia de escrever (o faziam razoavelmente bem, aliás) e isso dava ao relacionamento a sensação de profundidade madura.  Criava uma separação do restante dos casais adolescentes do mundo, algo totalmente especial que só eles possuíam, que só eles poderiam entender. (Diga-se de passagem, este era o mesmo pensamento que 87% dos casais de namorados pré-adultos tinham então).

Gostos parecidos nos fazem tomar decisões parecidas. Escolheram a mesma faculdade, mesmo curso, mesmo tudo. Foram pro interior e moraram juntos (mesmo que escondidos dos pais). Acreditavam mesmo que o ‘pra sempre’ era algo reservado para poucos e se sentiam cosmicamente sortudos por serem um dos poucos que haviam encontrado o verdadeiro amor (claro que quando se vive no mesmo ambiente e no mesmo caminho, é fácil dizer que tudo é amor. Não se tem pra onde ir, então se caminha juntos. Mas, e quando há uma separação de trilhas no caminho?).

Quando voltaram pra cidade grande, resolveram que iam continuar a morar juntos. Decidiram ficar noivos (os pais dela gostavam muito dele – “é um rapaz muito respeitoso e inteligente.” E os dele também – “é uma garota com o pé no chão, não que nem essas sem vergonhas por aí.”) e, no auge dos 22 anos, estavam vivendo o seu ‘pra sempre’ a cada dia.

Ela decidiu fazer mestrado, seguindo na área acadêmica e ele recebeu uma proposta ‘irrecusável’ para trabalhar em uma empresa multinacional de tradução. Fazia sentido, ele teria que sustentar uma casa e pretendia formar família (como dizia seu avô (ou era o avô dela?), “é papel do homem botar comida no prato e sapato no pé”), nada mais natural que aceitar o emprego (leia-se: “bom salário”) oferecido.
Isso foi há um ano.

Não tardou a mudar a escrita do romance. A ascensão da carreira acadêmica dela a deixou orgulhosa e prepotente (ou simplesmente trouxe à evidência o que já estava lá – não faz mal ser orgulhoso e prepotente quando se os é juntos). O status financeiro e o respeito profissional dela o tornou intransigente e egocêntrico. Logo, os “nós” que eram declarados aos borbotões, foram se tornando escassos e substituídos pelo “eu”. Os exclamações das certezas conjugais foram se reduzindo a pontos finais, depois se contorcendo em vírgulas e, logo em seguida, em interrogações. Os travessões que eram presentes nos diálogos sempre existentes no dia a dia do casal foram extintos e dava-se para resumir em um parágrafo curto o que se tinha a dizer um para o outro.  As definições dos verbetes que eram tão sólidas, eram reescritas no dia a dia.

Queriam e não queriam que tudo voltasse a ser como era antes. E a vida não aceita que andemos por dois caminhos. As escolhas foram feitas (e foi a primeira vez que houve pluralidade na escolha). Ele trabalhava até tarde, ela dormia cedo. E foram se desencontrando, apenas para fazer o cotidiano retratar a realidade que já havia em seus corações (se não fosse tão triste, seria bonito. Eram tão parecidos que até na hora de se distanciar, o faziam com uma harmonia invejável. Se é que se pode ter inveja disso.)

"Qual a real compreensão que eu posso ter do que significa ‘pra sempre’?" foi a pergunta que ela se fez quando acordou sozinha na cama de casal, naquela a manhã fria de meados de junho.
Esta pergunta foi a resposta que ela precisava. Levantou-se, tomou banho, arrumou as malas e escreveu a carta que já tinha escrito na sua mente muitas vezes nos últimos meses.

Quando ele chegou em casa, lá por volta das 15h, não a viu em lugar algum. Em cima da mesa, um envelope simples, com o nome dele na frente. Nunca acreditou em pressentimentos ou coisas do gênero, mas a convicção que ele teve de que aquele envelope seria o último, fez os pêlos da nuca se eriçarem. A resignação já havia se tornado maior que a esperança há tempos.

Reticente, pegou o envelope e o abriu. Leu a carta dela e estava escrito mais ou menos assim (faz tempo que eu li, não lembro muito bem):

“Eu te amo, mas não te amo mais.
Não mais que a mim mesmo, que minha vontade de ficar só pra saber quem sou.
Não mais que o meu espaço, meu tempo e minha solidão.
Não mais que os meus sonhos que se recusaram a se fundir com os seus.
Não mais que a vontade de ir e não perder mais o que restou.

Eu te amo, mas odeio.
A paz egoísta e a saudade incômoda que eu sinto quando você vai.
A convicção que eu tenho de que estamos certos de que estávamos errados antes.
Olhar nos teus olhos e não me ver mais.

Eu te amo, mas não mais.”

Mesmo triste por estar certo, não houve uma lágrima sequer. Ele não precisava ir até o quarto pra saber que ela tinha ido embora pra sempre (ou pelo menos, naquele dia, ele achou que entendeu um pouco mais do que isso significava). Pegou um papel novo e o mesmo envelope (colocou a aliança dele junto com a dela que já estava lá), riscou o seu nome e colocou o dela. No papel, um recado simples:

“Não existe lugar pior que o segundo lugar em um coração.
Seja feliz e um dia você encontre alguém que te faça amar sem conjunções.”

Deixou na caixa do correio da casa da mãe dela.

Ali morreu o leitor e escritor, mas ali também ele se tornou homem.