segunda-feira, 25 de julho de 2011

Na curva do rio

Já haviam se passado 8 anos desde que ela saiu pela porta carregando todas as roupas, metade do coração e deixando todas as memórias. 



Eles estavam casados há 4 anos, então. Eram o proverbial casal perfeito, faltavam apenas os filhos que, mais cedo ou mais tarde, iriam acabar surgindo. Ele queria três, ela se contentava com um casal com a menina mais velha. Acreditava que era melhor ter o caçula ao seu lado quando a filha saísse de casa em um futuro não tão longínquo quanto ela gostaria. Tinham acabado de voltar de Paris e, apesar da beleza da cidade não ser fielmente representada no comportamento do seu povo, a viagem havia beirado o inesquecível. Ao contrário dos outros casais, eles não viajavam durante o aniversário do casamento - eles sempre voltavam um dia antes. Dia 25 de julho era o dia em que se conheceram, foi o dia em que ele a beijou pela primeira vez, a pediu em namoro, alguns anos depois, a pediu em casamento e, no ano seguinte se casaram. Ele dizia ser um jeito romântico de celebrar uma data, criando memórias mais especiais. Ela dizia que ele só não queria ter que decorar muitas datas, principalmente depois de ter esquecido o aniversário dela no primeiro ano de namoro. 

As mulheres são assim. Elas não guardam as memórias de modo desconexo em uma caixa lá embaixo da cama da mente como os homens. Elas tecem as partes em uma composição meticulosa de rancor e, quando a última gota cai, ou a TPM ataca, elas tiram as partes costuradas da gaveta para jogar na nossa cara. Com sorte, vai ser algo do tamanho de um guardanapo que rapidamente passa pelo rosto e some. Porque se a obra se fez numa colcha de retalhos que é capaz de te cobrir por completo, não há mais saída. O perdão depende do quanto ela é capaz de te ver além desta costura de retalhos de dor.

Ela era do tipo durona, inflexível, sempre preto no branco. E isso dificultava em alguns aspectos do relacionamento - por não admitir estar errada, mesmo quando sabia estar, ela ia aos poucos inibindo a discussão de alguns tópicos dentro de casa. Mas isso não era motivo para preocupação, pois o casal realmente se amava. Todo ano, no dia 25 de julho, eles iam àquele cafè, à beira do rio na cidadezinha em que tiveram seu primeiro encontro, no primeiro semestre da faculdade. Ele pedia um chocolate quente grande (nunca foi fã de cafeína) e ela uma pedia um moccachino com avelã e canela, com duas colheres de açúcar. Ele gravou isso bem na memória não apenas porque achou engraçado e, pra ser sincero, um pouco afrescalhado da parte dela, mas porque aprendeu que sempre deve-se lembrar os gostos das mulheres. Elas podem mudar de opinião e de humor a cada hora, mas elas nunca alteram o gosto para um prato de comida ou as flores que preferem ganhar. Não foi diferente no ano em que voltaram de Paris, pois no dia seguinte estavam lá, à beira do rio de novo, vendo algumas fotos das viagens e tomando suas bebidas. O bom de julho é que o tempo seco praticamente garantia que não houve chuva, mas ainda assim havia um vento frio e folhas caindo e caídas que tornava essa transição entre o outono e inverno a época ideal para tomar café sentado na grama.



Ele não percebeu quando foi que o flerte inocente se tornou algo tão sério. A outra trabalhava no mesmo prédio e sempre se encontravam no elevador, no hall ou durante o almoço. Vez ou outra, também se cruzavam quando o happy hour das empresas era realizado no mesmo lugar. Não havia muitas opções nas redondezas, então os encontros eram mais frequentes. Era uma piadinha durante o happy hour, um sorriso, uma olhada mais prolongada. Na cabeça dele, não fazia por mal. Era apenas uma brincadeira, afinal, como diziam seus amigos, os homens precisam disso. Quando se deparou, estava em um quarto de um hotel qualquer, olhando para as paredes e se perguntando porque diabos estava fazendo aquilo. Sei que vai parecer clichê, mas no caso dele, foi de fato uma única vez que o ato se consumou - mas, que diferença faz? Se, porventura houver um grande juiz que irá o punir por estes erros, lhe daria duas sentenças - uma pela atitude leniente e outra pelo ato. Se tivesse parado antes de agir, isto não o livraria da condenação. 

Os homens são assim. Eles sempre baseiam (e justificam) seu comportamento, com alguma explicação meia-boca de que é algo ligado ao instinto, costume ou necessidade masculina. E, o pior de tudo, é que acreditam piamente neste código de conduta (quando lhes é propício) e encontram nos seus amigos, ou comparsas de crime, uma camaradagem que não existe apenas nas utopias entre os recantos femininos. Esta capacidade de separar corpo e coração é algo que existe (quando propício) de fato, mas por mais argumentos, exemplos e embasamentos científicos que você queira dar, isto apenas só vai fazer aumentar os retalhos que elas usam para costurar a sua colcha.

E no meio daquele outono, há oito anos, alguns dias após se desligar por completo da sua brincadeira (não tão) inocente, ele abriu o jogo com ela. Ela falou menos do que ele esperava, menos do que ele merecia. Disse que não havia retorno, que tudo estava acabado. No mesmo dia foi embora, não levou nada da casa. Alguns dias depois, os papéis do divórcio vieram por intermédio do advogado da família, um amigo de infância dele. Ele sentiu que houve malícia dela por ter enviado o amigo, mas não poderia culpá-la. Mesmo que um mal não justifica outro, o peso da culpa nos torna mais cegos do que a própria justiça. Ficou sabendo que alguns meses depois, ela se mudara para os Estados Unidos e, desde então, não teve mais notícias dela. Não se relacionou com ninguém desde então, mergulhou no trabalho, mas tinha uma vida social ativa. Saía com amigos, ia a festas e, vez ou outra, se atracava com uma moça sem nome (e muitos anos mais jovem) em uma danceteria qualquer pela cidade. Ele tinha de certa forma superado a dor, mas o lado que fere não tem feridas pra lamber, por isso não sabe quando se está curado. 



Ela finalmente fez o MBA e emendou o doutorado que almejava fazer em Harvard, tornou-se diretora e era a mais cotada para ser a vice-presidente da América Latina. Quando foi escolhida para o cargo, sabia que teria que voltar para o Brasil, mas não veio com peso no coração. Não avisou quase ninguém do seu retorno, tirando familiares e alguns poucos amigos (não em comum). Já se haviam passado pouco mais de sete anos desde que fora embora e, com o passar do tempo, não via mais em si as marcas daquilo que tinham a levado à fuga e ao refúgio. Seria mentira dizer que não pensava nele, mas não havia mais o gosto rançoso da traição quando sorvia as lembranças que iam surgindo com o passar do tempo e o passar nas ruas que tanto haviam mudado. Ficava o gosto doce dos risos compartilhados na boca e, ao engolir, o aperto no peito que era o sabor característico da saudade. A sabedoria que só vem com os anos de vida - e com as rugas no canto dos olhos - já gerava frutos em sua vida. Do pitbull, apelido "carinhoso" recebido pelo antigo chefe, que era quando saiu, havia se tornado uma águia - ainda astuta e capaz de atacar, mas capaz de enxergar o todo e o porvir. Mas o orgulho ainda a impedia de agir.



Somos formados com o conceito de que a pessoa que errou que deve fazer o maior esforço para se consertar. Não há concepção mais errada - apenas a pessoa que foi lesada que pode reiniciar a construção da ponte. O esforço de quem está ferido é muito maior, porque o culpado está ocupado causando feridas em si mesmo.

Não se sabe bem se foi a saudade que aumentou ou o cansaço de ficar remoendo naquilo que não doía mais, mas algo superou o orgulho. Ela decidiu que iria falar com ele, tentar reencontrá-lo. Não para reabrir feridas antigas, mas apenas para conversar, ver como ele estava. A letra chinesa de perdão é formada por três partes - mulher, boca e coração. O perdão só é verdadeiro quando da boca sai o que há no coração da mulher. Foi dormir pensando no que deveria falar, antecipando como seria revê-lo, o homem que um dia ela chamou de seu. O relógio despertou às 7h, como de costume. Ao olhar no relógio, ela viu que era dia 25 de julho e resolveu ir até o cafè na beira do rio. Qual lugar melhor para retomar forças para contatá-lo do que no lugar em que o viu pela primeira vez? Chegou um pouco mais tarde que costumava chegar quando estava com ele. Pediu o seu moccachino com avelã e canela, com duas colheres de açúcar. A atendente se espantou com o pedido e disse que era a primeira vez que ouvia uma outra pessoa pedir esta mesma bebida naquele dia. Mais estranho ainda porque era o mesmo daquele rapaz que aparecia todo ano nesse mesmo dia. 

Nos sete anos que antecederam este dia 25 de julho, lá estava ele no cafè, pedia sempre as duas bebidas, ainda com sua aliança no dedo. Quando perguntavam dela, ele dizia que ela viria mais tarde e depois se sentava na grama e passava o dia inteiro olhando para o rio, sem nem bebericar seu chocolate esfriado. Naquele ano, ele também estava lá. Ela o viu do outro lado da rua e, com a naturalidade que sempre lhe foi peculiar, andou com passos calmos, no entrecair das folhas secas até o lugar onde ele estava sentado, com os dois copos cheios.

- Boa tarde. Posso sentar?

Ele continou olhando para o rio e respondeu, um pouco distante:

- Desculpe-me, este lugar está ocupado. Estou aguardando minha esposa que está chegando de ...

Parou de falar quando olhou para o rosto dela. Perdeu as palavras no mesmo momento que encontrou o mesmo sorriso que viu na primeira vez que tinha se visto naquele lugar. Sorriu de volta, virou-se pra enxugar o choro iminente e apenas foi um pouco pro lado pra que ela pudesse também se sentar na toalha que ele estendeu - ela sempre reclamava de como as calças dele ficavam sujas porque ele se sentava direto no chão. Ela sentou e deitou no ombro dele, ficaram conversando como bons velhos conhecidos, como se nada houvesse acontecido. Nos anos que se seguiram estavam lá tomando café juntos, inclusive com os três filhos que preferiam levar doces e fazer um piquenique por lá.



Na verdade, era ela que precisava de uma segunda chance, ele apenas entrou de gaiato e tirou o bilhete premiado.

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