sexta-feira, 9 de maio de 2008

Dois em um (Filosofia de bar)

Eu sou velho, sou idoso, sou vivido, sou sábio, sou cansado. Mais velho que o amor que não deixa de existir, mais velho que a dor toda que reside em mim. E que dor é essa senão o reflexo do mundo para aquilo que eu me tornei? Como um sepulcro cravejado de brilhantes, nada me resta a não ser o fétido odor da morte que me acompanha, que me envolve as entranhas, que me seduz a mergulhar no seu oceano de perdição, eterno, etéreo. E o vão entre a vida que tive e a que não vivi, a centelha da efemeridade que arrefeceu qualquer pincelada de esperança no porvir.

O hoje, que destruiu o carinho do ontem, que martelou na pedra a tristeza do amanhã. Passos na areia, pegadas no solo em que me prostro, a incerteza do certo e errado, errante. Sem oásis, sem caminho no ermo, desértico, naquilo que um dia fora chamado de alma. Vivido e não vívido, envaidecendo-se do que não mais é, alargando o vão para o que podia e deveria ser. E como enxergar congruência no que se pode e no que se deve? Como discernir a própria pegada da de alguém que fincou os pés na terra com as mesmas tristezas, puxando o mesmo pesar e regando o solo com lágrimas de dor? Como discernir tudo quando não sei discernir o que eu era do que eu sou? Uma miríade de portas que se abrem, duas pernas que se negam a seguir, dois braços que se recusam a alcançar, dois olhos que se recusam a ver, uma boca que não sabe gritar.

Mesmo velho, sinto-me um infante, um rebento. Diminuído cada vez mais pela magnitude daquilo e daqueles que me cercam. Mesmo infante, sinto-me como um velho que não consegue mais enxergar as mudanças da vida. Busco a ilusão de empurrar o amanhã, isolando-me na ostra, refugiando-me na minha torre de marfim, nefelibata - caminhando e escondendo-me nas nuvens. A insônia torna-se parceira do meu cotidiano junto à solidão e as noites não-dormidas servem-me apenas de motivo para arrependimento quando o sol raia mais uma vez, para fazer nascer o desespero e abortar a esperança ainda prematura, de (não) viver mais um dia como o anterior.

Como é aquele orgulho de ser o que se quer, aquela dor de não ser o que se deve? Sentidos opostos que, a tristeza de um não afeta o contralateral. Aquilo que se vê com olhos perspicazes, pode não ser o que a realidade desdobra. E desdobra, cai, espatifa. Recolhe, espana, dobra e guarda. Disfarçada e deliberadamente se mente pro ar, esgana-se o coração e a garganta ganha um nó de melancolia bem apertado.

Infante, infâme, buscando justificar ao meu próprio mundo tudo que fiz e deixei de fazer. Quando a esperança se foi, levou consigo as cores, os amores. Restou-me o sonho para o qual minha razão exclama-me: disparate! De deitar-me em minha cama e que aquilo que um dia tive por certo, possa voltar, ao menos, a ser.

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Co-escrito com a srta. Flávia Soares.

Um comentário:

dicionarista-embaçado disse...

Um amigo me ensinou uma vez que a sombra não é só ausência de Luz. Também me fez ver que as coisas estão escritas em letras claramente legíveis – muito provavelmente em arial 12, espaçamento duplo – e que a dificuldade em ler está nos olhos da gente. Ele me ensinou que era tudo simples e que polissílabos não são assim tão necessários. Que o macro está no micro e que é assim que Ele trabalha.

Sinto falta de falar com ele sobre Ele, tenho falado com Ele sobre ele...