sexta-feira, 3 de outubro de 2008

O espelho e a 1ª pessoa singular

Pre Scriptum

A jornada naquilo que se vê no espelho é um dos passos rumo ao autoconhecimento. Todos possuem seus conflitos e desconfianças em relação ao que é apresentado de modo tão claro e ao mesmo tempo tão enigmático. Em algumas palavras, tento mostrar o início da minha jornada e como descobri que mesmo no caminho torto, nós temos que andar certo.

01

"O espelho, no mundo dos signos, transforma-se no fantasma de si mesmo, caricatura, escárnio lembrança." Umberto Eco

O espelho sempre foi meu algoz. Desde sempre, nele eu via algo que não me parecia aceitável. Em momentos esporádicos, tão raros quanto passagens de cometas, eu via algo que me parecia agradável. O espelho é muito mais do que algo que mostra a sua imagem refletida - nele você se enxerga como é. Pelo menos como é pra si mesmo. A "automiopia" pode muito bem enaltecer os vícios e denegrir as virtudes - ou vice-versa. Eu não era alguém diferente - ora enaltecendo vícios, ora virtudes, ao me olhar no espelho, raramente via a mim mesmo. Via meus erros, via as falhas, via a insustentável pressão do tempo, via que não era o bastante - mas não sabia definir para que ou para quem.

Reza a lenda que quebrar um espelho custa 7 anos de azar. Fico pensando quantos anos de azar custa quando quebramos a nós mesmos. Antes, acreditava que o espelho que me quebrava toda vez que tentava o encarar. Depois, percebi que eu me quebrava para não ver o que o espelho tinha que mostrar. E nessa guerra sintática, sendo ora sujeito executando a mim mesmo ou objeto, mas mesmo assim me sujeitando aos impropérios desferidos pelo sujeito, até então oculto, contra o eu que era transformado em cacos. E assim, talvez por medo e covardia, talvez por simples autopreservação, eu me escondi atrás do meu reflexo.

02

"Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... A alma exterior pode ser um espírito, um fluído, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação." Machado de Assis

O fato de se esconder quase sempre não é consciente - ao menos não no estágio em que o caráter ainda está em (de)formação. Quando conceitos são reiterados ou destruídos, posturas revistas e paradigmas quebrados. Nesta época, ficou muito difícil gostar de se ver. A bem da verdade, pode-se dizer que há duas fases - a primeira é aquela que perdura no início, quando saímos do casulo e queremos enfrentar o mundo. Nesta época, quando eu me via no espelho, eu me sentia um ser virtuoso, correto, acima do bem e do mal, intocável, incorruptível. E lá estava eu, quase gritando "para o alto e avante", até descobrir que no mundo real, as coisas são um pouco diferentes. Parece que quando nos viramos de costas é quando o espelho nos mostra o que realmente somos (ou como agimos).




Um extremo tende ao outro e, se um dia eu me vi como super-homem, o meu ego era feito de kryptonita. E assim começou a queda-livre, em todos os aspectos. Tinha meus 19 anos e enquanto o mundo crescia, eu comecei a ruir. E foi ai que começou a introspecção que perdurou até recentemente. Minha perspectiva viciada e viciosa fez com que cometesse erros crassos com muitos, mas principalmente comigo. A figura mudou completamente - no espelho, eu via um pateta enquanto alguns que me cercavam me viam como "pilar de fortaleza". A razão as vezes me dizia que eu não era nem um nem outro, mas o espelho me mostrava que eu era o pior dos humanos e isso erra corroborado em mim pela auto-intitulada (e raramente combatida) degradação da aparência. Vertigem. Do (meu) zênite ao (meu) nadir. A pior parte é aceitar a necessidade de se ver de novo – eu tinha vergonha, frustração, raiva do reflexo a ser visto no espelho. Aos meus olhos que há muito não buscavam meu reflexo, seria uma atividade hercúlea galgar os degraus de volta a ser alguém que valia a pena de ser visto. Mas aos poucos eu me levantei e das minhas entranhas tirei forças para perseguir aquilo que eu queria ser.

03

"Olhos bem abertos, quase dentro dos outros, dos iguais, do outro lado. Onde? Ele um dia perguntou-lhe: Que procuras? Apanhada de surpresa, afastou-se, compôs a figura e disse: Nada. Jura que ouviu a outra, também a afastar-se, dizer: Tudo." Licínia Quitério

Depois disso, por um bom tempo, quando me olhava no espelho, via-me de costas, como se sempre estivesse atrás daquilo que teria que ser. A imagem perdurava em minha mente pois independente do que fosse feito, eu sempre estaria um passo atrás daquilo que gostaria de ser. O mundo inteiro era refletido tal qual era e, de certo modo, eu também. Ali eu via a minha realidade, minha sina, meu destino, meu maior obstáculo. A minha razão gritava, ecoando em minha existência, que o que deveria buscar era ver de frente, face a face. Mas uma outra voz também falava, apenas audível para os ouvidos que descrêem, que eu não deveria ver o que eu havia me tornado. Que era vergonhoso, que traria sofrimento, decepção. Que eu me recusava a virar de frente, mesmo no reflexo, pois não queria que ser visto pelo que sou. Que queria esconder as marcas que foram deixadas. Marcas que apenas sentia, mas nunca fui capaz de mostrar, nem ao mesmo para mim mesmo.




Nesse diálogo entre o reflexo e eu, entre as razões conflitantes, apesar dos questionamentos, eu não queria achar uma resposta. Eu só queria mesmo parar de questionar. Parar de colocar em voga aquilo que ficou no passado, de destacar as dúvidas em detrimento às respostas que já tinha. Se as questões permanecem mesmo quando as respostas já são conhecidas, há alguma coisa errada. E percebi que na verdade o que estava acontecendo era que o que era visto não era o reflexo do que eu era de verdade e sim o reflexo de um reflexo. E por isso não havia saída, uma linha de questionamentos intermináveis. Assim como um espelho posto na frente de outro, um sempre vai tentar mostrar para o outro o seu lado, ad infinitum, sem achar consenso.

Reflexos não mudam, não aquiescem. Não há paz nem solução. Essa epifania levantou um questionamento que precisava ser resolvido - se o espelho mostra um reflexo de outro reflexo, onde estava o verdadeiro eu?

04

"Por acaso, surpreendo-me no espelho: Quem é esse que me olha e é tão mais velho que eu? (...) Nosso olhar duro interroga: 'O que fizeste de mim?'" Mário Quintana

Aprendi que o espelho não mente. Ele mostra exatamente aquilo que é apresentado à sua frente. Os olhos também não mentem - eles capturam a exata imagem daquilo que foi refletido. Nós mentimos. E de tanto mentir pra nós mesmo, pra mim mesmo, acabamos usando nossos reflexos criados como máscaras, como aquilo que apresentamos para ser refletido. Hoje não me vejo mais como super-herói ou pateta, não me vejo de costas nem de lado. Vejo-me de frente e vejo o que sou. Sem romance, sem ficção, sem idealismos, sem preconceitos. Hoje não vejo mais a "beleza" ou a "juventude" que lá estava alguns anos atrás, que via vez em quando em momentos de rara lucidez.

A priori, obviamente interrogamos, tentamos explicar ou justificar o porque de tantas mudanças - vida desregrada, falta de tempo, descuidos mil. Como se o reflexo real perguntasse para mim o que eu tinha feito para deixar chegar a este ponto. Contudo, vi também maturidade que antes não havia, sinceridade e profundidade que havia apenas nos conceitos ou até nos livros que eu sempre li. Nesse quesito, Lavoisier acerta em cheio - nada se perde, tudo se transforma. Talvez o que o externo tenha "perdido", o interior acabou "ganhando". No fim do dia, no fim da vida, eu sou eu.

Percebi que não há mal em desgostar um pouco do que se vê, contanto que isso não te faça desgostar do que se é. E, por mais clichê que possa parecer, gostar do que se é é a base para se mudar o que se está. Antissociais (respeitando a nova ortografia) podem começar a fazer amigos, misantropos a gostarem de gente, gordinhos podem emagrecer, nervosos podem se tornar mais calmos. E tudo isso começa com ver a si mesmo, a mim mesmo no espelho.

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