terça-feira, 27 de outubro de 2009

Só, letrando

Ávido leitor, sempre com um livro à tiracolo. Gostava de ler sobre história e tudo que moldou a sociedade e o mundo em que ele vivia, mas preferia os romances e a ficção. Na ficção, não havia limites, não havia regras nem lógica a ser aplicada. Sempre é possível voltar atrás. Viagem no tempo, realidades paralelas, apagar memórias, mudar trechos específicos da vida. O mais importante é que os livros não alteravam suas palavras, os livros não mentiam a respeito de si. Se você o julgar pela capa, mesmo que o conteúdo te faça mudar a opinião, a capa permanece a mesma. Uma das personagens que Martin Page criou dizia que quando crescesse, queria ser escritora ou coveira, porque apenas os livros e os mortos não mentem e não mudam. Ele, quando crescesse, queria ser morto ou livro, livre jamais.

Mas não tem como ser tão simples, aos poucos percebeu que haviam entrelinhas, mensagens subentendidas, metáforas e outras figuras de linguagem que, ora por outra, dizem o que não é dito de fato. Quando se acostumou a ler, via em cada palavra as suas letras. Cada qual podia ser uma nova palavra, uma nova frase, um novo livro. Não encarava mais cada palavra como um componente errático encaixado de modo inteligente pelas mãos letradas do escritor - mas cada qual possuía em si a capacidade de se desconstruir (e desconcertar) e formar em si só muito mais. Por ver tamanha individualidade nas palavras, sabia também da individualidade que possuía em si. E dessa individualidade, surgia a vergonha inevitável de ver suas letras espalhadas em histórias que não gostaria nem ao menos de ter lido, quanto mais reconhecer nelas o traço de sua autoria. Os olhos entreabertos ao olhar pra trás retratava bem em seu rosto o que tudo aquilo representava para si mesmo, a incapacidade de esquecer e a vergonha.

Quando era criança, ouvia com frequencia as pessoas dizendo: se Arrependimento matasse, eu teria morrido. Se eles soubessem que o arrependimento realmente mata, não usariam essa expressão tão leviana. Ainda mais porque o arrependimento é apenas o A, a primeira letra e o início de tanto mais que há de vir. "Se não tivesse dito tanta coisa". Arrepende-se apenas quando não se encontra no hoje, lógica para justificar o que fora ou não feito, o que fora ou não dito. E talvez por isso se arrependia, porque em sua mente não encontrava no presente razão para que suas letras escrevessem (e se perdessem) em textos tão vexatórios. Depois vem a Revolta. A sua revolta apenas tentava aplacar o arrependimento existente, ou talvez apenas convencê-lo de que o problema não é "o que" foi feito e sim, "como" foi feito. "Se não tivesse exagerado na dose". A revolta trouxe um conforto temporário, pois independente de como se explica, o erro, seu erro permanece indelével.

Na vida não se deixa palavras pela metade, mesmo que em algumas ocasiões tentemos cortá-las no meio. Neste caso, a caneta, enquanto traçava o começo, já havia, em si, decretado o fim. Assim, a escrita continuou e veio o REmorso. Ele surgiu quando ele percebeu que a revolta era vazia e o só lhe restava terminar o prato que ele mesmo havia preparado e posto à sua própria mesa. "Nosso amor se transformou em bom dia". Remorso é perceber que tudo aquilo se tornou só isso. Logo viu que já havia ido longe demais para voltar atrás, porém não havia a frente de si um destino que lhe apetecia. Surgem assim as PENdências, que são os pequenos passos (e penitências, muitas vezes auto-impostas) visando chegar em um objetivo que ainda não se vê. "Qual o segredo da felicidade?". Quantas vezes se perguntou qual o segredo, qual o caminho. Antes disso, será que realmente merecia tudo isso depois de tamanho desperdício? Quando caiu em si, só conseguia ver a DIstância. Não apenas a distância entre onde estava e onde queria estar. Mas também a distância de onde poderia estar e onde de fato estava. A distância que acabou criando entre si e os que admirava, entre si da realidade e o si que existia apenas nas fábulas em seu coração. "Sem teu carinho e tua atenção". Não conseguia reconhecer-se em si mesmo, não queria, a bem da verdade. Dizia em suas lamentações silenciosas: O que eu sou odeia o que me tornei.

Não querer encontrar dentro de si o responsável pela queda, o levou diretamente às MENtiras, que com seu gosto doce agradava o paladar e eram ditas aos ventos com facilidade. Mas, no âmago, tinham o gosto mais amargo. O que não mentiu disse que o que estraga o homem não é o que entra pela boca, mas o que sai dela. "Se não tivesse inventado tanto". E foi tanta fábula disparada que aos poucos não sabia mais diferenciar a mentira da verdade. A caminhada se tornou tão sinuosa que perdeu-se no TOrmento da sua própria alma. O seu arrependimento se soletrava assim, mas será que acabaria desta maneira? "Podia ter vivido um amor".

Pensou em parar de ser (ou ler), afinal toda esta história poderia se resumir nas letras em vermelho. Mas, se não fosse livro, só lhe restaria a alternativa. Decidiu que a última palavra não seria a que tinha acabado de soletrar, mas não tinha idéia se havia ainda em si a capacidade ou as letras para (re)escrever o que restava de seu livro. "Será preciso ficar só pra se viver?" Escreveu então em voz baixa, com um lampejo de fé de que ainda haveria um leitor que não desistiria de lê-lo: Se viver, lerá.

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Os inserts entre aspas são da música Grand'Hotel do Kid Abelha. Para quem não conhece, clique.
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2 comentários:

dicionarista-embaçado disse...

S[er]ão sempre longos processos. S[er]ão sempre simples como um termo. Sempre. "Mas sempre não é todo dia"

Mikhailovitch disse...

Arrependimento é que nem fruta verde, amarra a boca e demora pra sair o gosto.